O que mais nos empobrece é descobrirmo-nos ausentes.

1º Capítulo

Lavrava o rosto com as mãos. Provavelmente cansaço. Todos os gestos eram agora lentos. Estaticamente inquietos na morosidade da noite. O amanhecer tardava e havia tempo. Demasiado aliás.
Era preciso que uma intempérie ciente da sua própria magnitude abanasse o globo para que ela despertasse. O caos não a assustaria. Pelo contrário! Ser-lhe-ia familiar.
Pelo chão a vestimenta desinteressante. Em cima da cama um livro ou dois entreabertos à certeza do abandono. Um copo de água parada ao fundo parece retratar todo o espaço. Não há luz suficiente, embora a que exista seja já penoso para o olhar cansado daquele rosto.
A luz incidia apenas na secretária onde debruçava o corpo, sobre as letras gastas. Sobre a mesa uns objectos jaziam indiferentes á constância dos dias. Uma calculadora inútil, que não era de matemáticas. Apenas somava rostos, subtraindo destes o grito contido há muito. Uma pilha de esferográficas gastas, que nunca gostava de abandonar pela circunstância da sua inutilidade. Tinha um estranho apego a tudo o que antes tinha sido útil. Talvez se revisse no vazio do desuso, no hiato deixado pelo abandono das mãos que a manuseavam durante tanto tempo.
Olhou o relógio. Era já a madrugada ansiada longa quando decide entregar-se ao deleite da dormência noctívaga que usava para desenhar os contornos dos rostos de ninguém. Ausentes de si, mas presentes na sua memória, pairavam frases soltas de diálogos inacabados e monólogos cuja aspiração a diálogos era inegável.
Tudo tinha ficado por dizer, por fazer até. Um misto de inconformismo desmesurado e revolta racional invadem-lhe o espírito. Porque motivo não terá dito tudo? Descobre então que mais do que rostos desconsertados pela ausência, o que descobre são pensamentos deambulantes que a assolam de quando em vez. Enquanto que uns a inspiram a prosseguir com buscas de palavras, outros esvaziam-lhe o tacto, esfriam-lhe a música de fundo que a aconchega, e fazem com que deserte por entre os meandros do desconforto.
Deita-se. Repousa seu olhar ao fundo do quarto já escuro. Nada vê. Contudo sabe que lá está o que não consegue ver. O seu rosto ausenta-se vagarosamente. Amanha reencontram-se o dia, a esferográfica e o sem número de vagabundos pensamentos que traz sempre consigo.
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Bem-vindos a esta espécie de 'reservatório' de ideias. Espero encontrar-vos durante o caminho que nos leva, a todos, ao âmago de nós mesmos. Boa viagem, companheiros de jangada.

2 pés descalços:

J disse...

Finalmente um espaço teu! Assim sim meu bem! :D

M disse...

Deleite!!!!

Perfeito para uma estreia. Não podia ter sido maior! Eu, de ora avante, leitora assídua, aqui me curvo perante vós, ansiando por mais, esperando (sempre!) melhor!

Voos altos companheira de jangada, voos altos! ;)

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