Lavrava o rosto com as mãos. Provavelmente cansaço. Todos os gestos eram agora lentos. Estaticamente inquietos na morosidade da noite. O amanhecer tardava e havia tempo. Demasiado aliás.
Era preciso que uma intempérie ciente da sua própria magnitude abanasse o globo para que ela despertasse. O caos não a assustaria. Pelo contrário! Ser-lhe-ia familiar.
Pelo chão a vestimenta desinteressante. Em cima da cama um livro ou dois entreabertos à certeza do abandono. Um copo de água parada ao fundo parece retratar todo o espaço. Não há luz suficiente, embora a que exista seja já penoso para o olhar cansado daquele rosto.
A luz incidia apenas na secretária onde debruçava o corpo, sobre as letras gastas. Sobre a mesa uns objectos jaziam indiferentes á constância dos dias. Uma calculadora inútil, que não era de matemáticas. Apenas somava rostos, subtraindo destes o grito contido há muito. Uma pilha de esferográficas gastas, que nunca gostava de abandonar pela circunstância da sua inutilidade. Tinha um estranho apego a tudo o que antes tinha sido útil. Talvez se revisse no vazio do desuso, no hiato deixado pelo abandono das mãos que a manuseavam durante tanto tempo.
Olhou o relógio. Era já a madrugada ansiada longa quando decide entregar-se ao deleite da dormência noctívaga que usava para desenhar os contornos dos rostos de ninguém. Ausentes de si, mas presentes na sua memória, pairavam frases soltas de diálogos inacabados e monólogos cuja aspiração a diálogos era inegável.
Tudo tinha ficado por dizer, por fazer até. Um misto de inconformismo desmesurado e revolta racional invadem-lhe o espírito. Porque motivo não terá dito tudo? Descobre então que mais do que rostos desconsertados pela ausência, o que descobre são pensamentos deambulantes que a assolam de quando em vez. Enquanto que uns a inspiram a prosseguir com buscas de palavras, outros esvaziam-lhe o tacto, esfriam-lhe a música de fundo que a aconchega, e fazem com que deserte por entre os meandros do desconforto.
Deita-se. Repousa seu olhar ao fundo do quarto já escuro. Nada vê. Contudo sabe que lá está o que não consegue ver. O seu rosto ausenta-se vagarosamente. Amanha reencontram-se o dia, a esferográfica e o sem número de vagabundos pensamentos que traz sempre consigo.
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Bem-vindos a esta espécie de 'reservatório' de ideias. Espero encontrar-vos durante o caminho que nos leva, a todos, ao âmago de nós mesmos. Boa viagem, companheiros de jangada.