abyssus abyssum invocat - reencontros
Havia toda uma contextualização pretérita que se afigurava asfixiante. Que lugar era o seu? Que túmulo era aquele em que jazia inerte enquanto o mundo corria, vagarosamente, lá fora?
Sabia-se feliz naquela dúvida existencial do que era de facto a felicidade. Sim, sempre se preocupou demais. E sim, sempre lutou de menos... Parecia-lhe tudo demasiado distante para ser real no entanto demasiado perto para ser mentira. Vivera tudo aquilo às suas mãos.
"Eu sei que devia contar-lhe... Mas será justo que o faça não porque quero mas porque me sinto obrigada a fazê-lo?". Às vezes falava comigo. Tínhamos demoradas conversas e depois partia. Nunca agendávamos aqueles fugazes encontros, porquanto a força da necessidade se encarregava disso.
Sempre soube que não queria falar no assunto, mas nunca lho disse. Ser-lhe-ia demasiado penoso. Aliás, sê-lo-ia para mim. Posto isto, reclinei-me naquele impulso egoísta e deixei que vagueasse.
Também nunca lhe cheguei a contar como choro quando parte, como me entrego à crepitante chama do remorso. Também para quê fazê-lo?
E assim, neste impasse, se coloca a proeminente questão: que fazer?
Eu tinha (re)visto todo aquele processo e francamente parecia-me inacreditável como tudo aquilo tinha sido possível. Sei que nunca me disse que era forte e talvez por culpa minha não a soubesse tão fraca. Daquela bruma descendente e peréne vejo-a brotar cada vez que cerro os olhos. Parece-me hoje aquela manhã de outrora. Levava a camisola castanha às riscas que a fazia assemelhar-se a uma qualquer capa de livro desmesuradamente comercializado. As calças de bombazine (que de outra forma não usaria) sobejavam-lhe rente ao chão. Uma mala de cabedal e um cachecol de lã, que se afigurava inadequado dado que a camisola era demasiado primaveril, completavam aquele vislumbre de gente. Hoje sei que usa esta mesma vestimenta quando o seu semblante se mostra demasiado cansado para se esforçar. Na altura, era-me alheio tal facto.
Sentou-se naquele gélido banco de metal e ali permaneceu durante hora e meia. Nada a demovia. O sol, nascendo incompreensivelmente, iluminava-lhe o rosto pálido, triste, morto. Tinha os olhos mortiços rasos de água. Apenas os lábios, de um carmim ímpar, se compadeciam com aquela luz laranja que brotava do horizonte.
Sem que nada o fizesse prever, levantou-se e dirigiu-se para a plataforma. Arrastando os ténis gastos subiu a escadaria já sem tinta. Lá do alto fitou o chão. Ao fundo ouviu um bramido e desde logo soube ser a hora. À partida todo aquele ritual me era ininteligível. Só depois compreendi. Preparou-se. Apertou a mala ao corpo e compôs o cachecol. A brisa era cortante.
...
Um compasso de espera.
...
Viu o destino deslizar pelos carris. No seu rosto exangue a conformação, o desânimo, a saudade antecipada. Olhou-me. Sem que nada o fizesse prever deitou-me um demorado olhar e recuou. Ainda hoje me indago como não mergulhou no abismo em que se encontrava. Talvez não descubra a resposta nunca. Talvez não exista resposta. Fiquei a vê-la afastar-se.
De quando em vez lá surge, denegrida pelo tempo que perde em devaneios. E eu cá estou. Pensa-me um qualquer rosto alheio que não sou. Sou-lhe mais do que julga e menos do que gostaria. Latejo no seu pensamento quando aquela manhã se augura próxima, repetível ou meramente pensável. Hoje e sempre estarei presente para a afastar de um destino que lhe não pertence e ao qual não a entregarei. Sabe onde me encontrar. Sabe onde me perder.
12/27/2009 03:43:00 da tarde | | 3 Comments
O olho de quem vê
Estamos num campo de batalha. Há risos de escárnio e gritos exasperantes que reclamam ajuda que não chega. Eu estou nesta seara de terror. Olho em redor e não há rostos, apenas corpos que se debatem por um lugar que é de todos. A chuva. O chão lamacento. As lágrimas. Lá no alto vê-se o tal, vitorioso e contemplado com o recolher de restos de tempo. Numa guerra alguém tem de vencer...Mas será que a guerra tem de ser erguida para que haja quem vença?
Estamos num campo de batalha. No fundo estamos sozinhos. Até ao último restício de sol os errantes deambulam por entre mundos de outros, que lhes merecem mais atenção do que o sofrimento dos que lutam. Hoje todos lutamos. Hoje alguém morre enquanto perdemos tempo com lutas infrutíferas, assentes em ideais erróneos. Hoje somos irmãos da nossa força e não do próximo.
Estamos num campo de batalha que antes foi um jardim de paz, cujos frutos foram arrancados precocemente, para serem deitados para valas comuns. Apodrecem os sonhos. O tempo passa. Somos iguais na diferença do que nos faz ansiar por mais. O tempo passa. Cansados, fitamos o nosso troféu. o nada.
Hoje somos ilhéus de revolta inusitada, estúpida, fútil. Eu sou uma espada também, mas não quero destruir mais frutos. Sou empurrada para a frente. A resignação. Nem tudo tem de escapar à nossa vontade, certo? Haverá alguma coisa que nos pertença deveras? Enquanto a resposta não chega a seara de medo é semeada incessantemente. Usados, sujos, esmagados são os frutos dos sonhos, os próprios sonhos. Somos todos escravos voluntários de vontades alheias que nos rebelam uns contra os outros e contra as quais não nos insurgimos. Vagueamos vazios.
10/21/2009 10:24:00 da tarde | | 1 Comments
1º Capítulo
10/08/2009 03:39:00 da manhã | | 2 Comments
Pseudo-autora
- Freja Inge
- Áquem das expectativas. Além do expectável.
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