Agora, neste momento, grito em jeito de mudez artificial. Gritei com o rosto, com as mãos, mas não com a boca. Fugiram-me as palavras... Será? Ou, estando lá, apenas não as consigo...
Sim, também agora não consigo.
É tarde. Não apenas nas horas, mas em tudo. Passou já tanto tempo, demasiado. Sucederam-se hiatos por preencher por coisas que havia a dizer... Eu disse algumas, não muitas. Hoje sei que talvez não as suficientes. No entanto, tendo a crer que ainda assim foram sobejas, porque repetidas e gastas.
Estou exausta e é tarde. Cansei-me de me degladear comigo própria. Com os ideais que te vendi e não compraste. Com as opiniões que ignoraste, uma e outra vez. Com a sensação de solitude contigo a meu lado.
Errei, sim. Sei-o bem. Tentei fazer mais do que alguma vez poderia almejar. Tentei mudar-te. Não o disse, mas no fundo foi disso que se tratou. Não o fiz com mau intento, mas não o fiz bem feito, de outro modo não estaria aqui, a estas horas...
Pesam-me o olhar e o peito. Céus, é mesmo tarde!
Não adianta dormir. Amanhã acordaremos inalterados, imperfeitamente acomodados, estupidamente convencidos que tudo se resolve como que por telepatia contida.
Anoiteceu há muito e estou sozinha. Parece que sempre estive. Todos os passeios, as conversas circunstanciais, as menos circunstanciais mas monologais, os presentes... Parece tudo tão esfumado, tão inútil. Houve tempo em que bastavam estas pequenas coisas para preencher os dias, até que os temas se rarefizeram e restaram apenas aqueles de que não é suposto falar, não sei bem porquê.
Estou tão triste com tudo isto que nos aconteceu, e o pior foi sequer ter acontecido o que quer que fosse. Não me arrependo. Olhando para trás também não me orgulho. Estou triste mas não choro. Chorei muito, ri de menos, e o que restou? Uma mão cheia de recordações e outra de vazios por suprir.
Sempre poderíamos tentar reinventar-nos, mudar. Mas mudar o quê? Quem?
Soam vozes, lá fora. Ainda há quem viva a estas horas. Nós não. Mal falamos sequer. Como chegámos a este ponto sem retorno aparente? Onde ficou o encanto do princípio? Provavelmente algures pelo passadiço junto ao rio, onde sucumbiram as esperanças e os alentos de um qualquer destino partilhado.
Temo ficar sozinha, mesmo já o estando agora. E o tempo pesa tanto...
O breu ocupa o espaço, e a mente é tomada de assalto por retrospectivas sem fundamento. Concluo o mesmo, repetidamente. Esgotámo-nos mutuamente, e assim desgastámos o todo que existiu um dia.
Deixo-me adormecer. Não fará diferença. Tenho passado ao lado da vida e agora não tenho nada no regaço. Estou oca, corroída, dormente. Sinto-me sempre pendente, em função de coisa nenhuma.
Chegará um dia em que não vens mais, porque não tens que vir. Terás outros destinos, outras ambições, e tudo isto será uma imagem estanque, encerrada num vão de escada da memória. Não sei se falta muito ou pouco, mas sinto que já faltou mais.
Perdemo-nos no caminho para casa. E quando parecia que nos tínhamos encontrado descobrimos que não há chão e há um tecto. Não há suporte, há limite. E há pessoas que passam distraídas perante o que se passa. Ninguém reparou, talvez nem tu. Eu, só. Podíamos até remediar a situação, improvisar. Mas nunca estaríamos seguros, pois não?
Fomos palhaços, fomos críticos. Fomos companheiros e cruéis. Fomos crianças com saudade da infância ainda por viver. Fomos um e agora somos dois.
É madrugada fria.
Rendo-me e dou de mim ao cansaço. Até depois.
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