Quando chegas?
Numa qualquer manhã de Janeiro apareceu. Embora nunca a esperasse, desta vez conseguira surpreender-me. Como não era capaz de a recusar, pedi-lhe que entrasse. Trazia um saco pendido da mão esquerda e fazia um esforço desmesurado para girar a maçaneta daquela porta velha e brilhantemente polida pela mão do tempo.
Vestia de negro. Com o cabelo esquecido sobre a face rosada disse-me: "Vim a correr. Chove muito.". O rosto estava cada vez mais vazio, magro, baço. Talvez não se apercebesse do que se passava. Talvez não quisesse perceber.
Convidei-a a sentar-se junto ao fogo. Com o à-vontade de quem partilha connosco as horas, puxou a manta de retalhos e cobriu as pernas desprovidas de alento. Deixou-se vencer pela distância, desmaiando doce e vagarosamente no meu regaço. Assim ficámos durante segundos, sucessivos, infindáveis, acutilantes. Por muito que me fosse penoso, aquele era um ritual inquebrável, inexorável, como o era de resto a necessidade que sentia de passar por cá de quando em vez. Adormeceu.
Sem qualquer rasgo de originalidade, fiz um capuccino quente. Continuava a ver nos pequenes detalhes uma forma de me insurgir contra a banalidade que me era certa e como tal aprimorei-me naquela já constante prática. Levei a chávena, ferozmente fervente, até à sala. Ela acordou em sobressalto. Num movimento perdido do norte atingiu a chávena. Todo o esforço e empenho se perderam pela carpete cinzenta.
Começou a soluçar. Tremia-lhe a voz. Disse-lhe que não havia problema. que nem gostava muito da carpete, mas nada parecia acalmá-la. Nunca a tinha visto assim. Daqueles olhos já de si tristes brotaram afiadas farpas, que rasgaram a bruma, ao reluzirem majestosas. Não sabia o que fazer...
Num acesso de desespero acerquei-me daquela alma despojada de vida, e agarrando-lhe firmemente nos braços mortos, disferi-lhe um golpe vil. Ordenei que se calasse. Que me deixasse pensar sequer!
Por breves instantes pareceu resultar. Com os lábios humedecidos pelas lágrimas olhou-me. Retomou o pranto de seguida. Deixei-a sozinha.
Não conseguia compreender o que a inquietava tão severamente. Era brilhante. Sempre se dera aos prazeres do espírito. Cheguei a ler-lhe os sonhos, em efervescência criativa, qual sofreguidão de futuro. Tinha tudo para se entregar aos mais ensolarados dias. Não obstante parecia ser-lhe deveras prazeroso recolher-se no negrume de horas vendidas às tentativas de normalidade e rituais de aceitação de um eu resignado, impuramente real, crudelíssimo dada a sua verosimilhança com o grotesco.
Confessou-me uma vez que já não era capaz de ser um prodígio. Qualquer que fosse a sua aptidão para o ser cessara com os anos. No espinho da idade, no auge dos seus escassos outonos, escapara-lhe a juventude de que carecia para que a quisessem. Haviam-lhe sido fechadas todas as portas, dizia-me. Apenas a minha continuava entreaberta.
3/30/2010 05:15:00 da tarde | | 1 Comments
Pseudo-autora
- Freja Inge
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